(continuando)
-Faísca de ignição e palito de fósforo existem APENAS para iniciar a queima de algum material combustível, geram calor até uma determinada temperatura e mesmo assim por um tempo finito, e a única forma de aumentar a temperatura para uma determinada situação só se consegue aumentando a potência, o que equivale ao maior numero de palitos acessos simultaneamente ou, no caso da faísca, ao produto da tensão pela corrente. Como energia não se cria, apenas se transforma, e como em toda transformação existe perda, para aumentar a temperatura da faísca só existem dois caminhos, aumentar a potência do circuito elétrico gerador da faísca, que é o mais simples e óbvio, ou diminuir as perdas lá na vela de ignição, o que normalmente é complicado, como veremos depois.
Outra coisa em comum é que, assim como o palito, a faísca é uma coisa única, pra efeitos práticos indivisível, e caso seja possível dividir também dividiremos sua potência, inclusive com possibilidade de aumento de perdas, e esta idéia será utilizada mais adiante.
-Uma das principais características de todo combustível é a temperatura de aquecimento para que ocorra reação com o oxigênio do ar, ou seja, para que se dê o início da combustão. Outra é a relação entre a quantidade de ar e a quantidade de combustível, já que tanto o excesso de um ou de outro alteram a possibilidade de inicio de queima ou a continuidade desta queima.
Papel é composto principalmente de celulose, que requer uma determinada temperatura e uma determinada relação com o ar para que exista combustão. Papelão também é composto por celulose e outros agregados, só que de forma, digamos, menos pura, e por possuir composição diferente, tanto a temperatura quanto a relação com o ar também são diferentes para que exista o princípio e a continuidade da combustão.
Gasolina, álcool, diesel, GNV, querosene, etc, possuem composições diferentes, logo para que ocorra a combustão requerem temperatura e relação com o ar também diferentes. Por exemplo, quando comparado ao álcool, a gasolina requer uma faísca com menor temperatura para que o processo de queima se inicie, e por ser "mais energético", para um mesmo volume de ar é necessário um menor volume de gasolina quando comparado ao álcool.
GNV então, possui uma temperatura para inicio de queima "lá no alto", requerendo uma faísca mais parruda que a gasolina, ou mesmo que o álcool.
-Pelo senso comum imagina-se o interior da câmara de combustão como sendo uma atmosfera estática, quando na verdade, no decorrer dos quatro ciclos do motor, o que mais existe é turbulência e variação de pressão e temperatura.
Se acender um pedaço de papel na presença de vento já é algo um tanto quanto difícil, mais complicado ainda é iniciar a queima da mistura dentro da câmara. Pra chegar até lá, o ar tem que passar por dutos, curvas e afunilamentos, e tudo isso gera turbulência, e se por um lado a turbulência atrapalha, por outro dá uma mão, já que ela exerce influência benéfica na homogeneidade da mistura ar/combustível. Se veneno ou remédio vai depender da dose, mas seja ela qual for, quanto maior a turbulência maior a necessidade de energia por parte da faísca, a não ser que se use de algum artifício que diminua a turbulência no espaço entre os eletrodos, e isso é mais ou menos fácil de se conseguir com a própria vela de ignição.
Acontece que o ar sempre entra na câmara por um local fixo, a abertura da válvula de admissão, e sempre com uma trajetória também fixa, determinada pelo duto de admissão, daí é só posicionar a vela de ignição de tal forma que o eletrodo da carcaça sirva de anteparo ao espaço onde é formada a faísca. Seria o mesmo que proteger com a mão a chama do palito, evitando assim que o vento apague a chama.
Preparador de motor que se preza usa e abusa deste artifício, só que isso requer conhecimento do que se passa lá dentro da câmara e requer um posicionamento muito preciso da vela, e para simplificar a vida (só para simplificar, nada mais do que isso) surgiram as velas de múltiplos eletrodos, já que neste tipo de vela sempre existirá um eletrodo servindo de anteparo, além do que a faísca não acontece de forma longitudinal em relação ao eletrodo central e sim de forma radial, o que protege mais ainda a faísca. E dessa forma, na base do anteparo, consegue-se aproveitar melhor a faísca, diminuindo as perdas proporcionadas pela turbulência.
Muita gente pensa que numa vela de múltiplos eletrodos sempre existirão múltiplas faíscas, uma para cada eletrodo, só que a energia elétrica sempre circula pelo caminho de menor resistência, e uma vez encontrado este caminho é por lá - e só por lá - que surgirá a faísca. Nada impede que em circunstâncias muito especiais exista faísca em dois eletrodos, só que a potência total será distribuída entre elas, ou seja, a capacidade energética de cada faísca será uma fração do total, e individualmente talvez nem exista a possibilidade de aquecer a mistura ar/combustível a ponto de iniciar a combustão. Para melhor entender é só lembrar do exemplo de acender papel sob vento, onde vários palitos juntos podem iniciar a queima, o mesmo não acontecendo com os mesmos palitos espaçados entre si. Tudo é uma questão de potência. Se metade dela já for suficiente, dividir por dois pode até aumentar a chance de ignição, mas se metade for insuficiente, nenhuma das partes terá serventia. Como já comentado e pra sorte de quem usa este tipo de vela, o mais comum é ocorrer faísca a partir de um único eletrodo radial, justamente o que está servindo de anteparo para a turbulência.
-Posicionar o fósforo pela borda ou pelo meio do papel pode ser entendido como uma estratégia que facilita ou dificulta o inicio da combustão, o mesmo acontecendo com o posicionamento dos eletrodos em relação à câmara de combustão.
O ideal é que os eletrodos fiquem posicionados no local de menor turbulência e maior homogeneidade da mistura, o que não significa necessariamente que o epicentro da câmara seja o local ideal. Identificar que a borda do papel seja a melhor estratégia é mais do que óbvio, mas fazer o mesmo com os eletrodos de vela é um salseiro, ainda mais que a homogeneidade e a turbulência mudam em função da rotação do motor. Pra nossa sorte, quem encontra este lugar são os malucos que trabalham com projeto e desenvolvimento de motores, pra nós resta apenas o trabalho de desenroscar e enroscar as velas em seus respectivos alojamentos, mas sem esquecer de um grande detalhe, que é a profundidade dos eletrodos dentro da câmara, e aí entra a questão "vela convencional" versus "vela de múltiplos eletrodos", que mesmo quando possuem a mesma "profundidade" formam a faísca em pontos distintos, com maior ou menor exposição à mistura. Num dado motor, um tipo de vela pode prevalecer ao outro, ou mesmo não fazer a menor diferença, tudo vai depender de inúmeras características do próprio motor, do sistema de ignição e até do combustível utilizado.
-Palito de fósforo, faísca de ignição. Praticamente tudo o que foi escrito acima tem a ver com potência da faísca, e como esta potência tem limite e como tudo que acontece dentro da câmara de combustão só serve pra sacanear a faísca, o jeito é fazer uso de artifícios que aproveitem o máximo de calor gerado pela faísca, mas é aquela história, pra cada mal existe um remédio, e pra não transformar remédio em veneno só sabendo a dose e o local da aplicação.
Vendo a coisa deste jeito tudo parece muito complicado, e é. Mas uma forma de simplificar a vida é substituir o palito por um maçarico, ou o sistema de ignição por outro que gere faísca mais energética. Aí basta ter uma mistura adequada que a faísca garante o início da queima, que é sua única função, e o monte de detalhes já descritos passam a ter função secundária ou até desprezível.
Em tempo, combustão tem tudo a ver com química, e dentro desta visão a faísca de ignição atua como um catalisador, ou seja, serve apenas como gatilho para início do processo de combustão. Escrevo isso porque é comum pensar que faísca mais parruda é igual a motor mais potente. De certa forma isso é correto, não que a faísca aumente a energia do combustível, é claro, mas contribui com o aproveitamento desta energia diminuindo perdas, o que já é uma grande coisa.
Se a ignição já é um maçarico, de nada adianta transforma-la em lança-chamas, mas se é do tipo palito, talvez o motor não esteja rendendo o que deveria render, lançando no escape combustível não queimado.
Esse assunto vai longe e só entrei em alguns poucos detalhes, mas acho que já dá para entender que vela convencional ou de múltiplos eletrodos é uma questão de escolha, que pode resolver ou atrapalhar, mas lembrando de alguns conceitos a coisa fica mais simples, mesmo que seja na base do palito de fósforo e papel. Só não vale por fogo no jipão.
Sds,
Sukys